O presente artigo propõe uma análise histórica e comparativa da relação entre adultos e bonecas realistas, explorando como este fenômeno evoluiu desde os tempos antigos até a contemporaneidade. Ao investigar usos simbólicos, rituais e relação afetiva ao longo do tempo, busca-se compreender os fatores sociais, psicológicos e tecnológicos que contribuem para a crescente dependência emocional de adultos por bonecas hiper-realistas na atualidade. O estudo também discute os impactos dessa dependência à luz da modernidade líquida, da solidão urbana e da robotização das relações.

A relação entre seres humanos e objetos antropomórficos remonta à Antiguidade. No entanto, nas últimas décadas, essa relação tem se intensificado, especialmente entre adultos que desenvolvem vínculos emocionais e afetivos com bonecas realistas — como as chamadas reborn dolls ou sex dolls. Tal fenômeno suscita questionamentos acerca das transformações culturais, emocionais e tecnológicas no mundo contemporâneo. Este artigo busca compreender essa dependência a partir de uma perspectiva histórica e comparativa.

Antecedentes históricos: figuras humanas como objetos de vínculo

Desde tempos remotos, os seres humanos criam representações humanas. No Egito antigo, por exemplo, bonecas de madeira e argila eram utilizadas em rituais funerários, sendo também interpretadas como brinquedos ou objetos simbólicos (ANDERSON, 2007). Na Roma Antiga, figuras antropomórficas de marfim e cera desempenhavam papéis simbólicos, tanto religiosos quanto domésticos (FRASER, 1997).

Embora essas figuras não fossem, necessariamente, realistas nos moldes atuais, é evidente que já havia um uso emocional e simbólico desses objetos. A antropóloga Mary Douglas (1991) destaca que objetos rituais frequentemente funcionam como extensões do eu, servindo de ponte entre o indivíduo e o mundo social.

A transição moderna: do simbólico ao afetivo

Durante os séculos XVII e XVIII, a produção artesanal europeia elevou o realismo das bonecas, especialmente com o uso da porcelana. Inicialmente brinquedos infantis, algumas bonecas passaram a ter valor memorial para adultos, como objetos de luto ou representação simbólica de filhos falecidos (FORMANEK-BRUNELL, 1998). No contexto vitoriano, elas também simbolizavam a pureza infantil e a idealização da maternidade (KLINE, 1995).

A partir do século XX, as discussões da psicanálise sobre “objetos transicionais” trouxeram nova luz à função afetiva desses objetos. Donald Winnicott (1971) observou que certos objetos, como bonecas ou mantas, ajudam o indivíduo — especialmente a criança — a fazer a transição entre dependência absoluta e independência emocional. Embora voltado ao desenvolvimento infantil, esse conceito permite compreender a permanência de vínculos afetivos com objetos na vida adulta.

A contemporaneidade: hiperralismo, solidão e tecnologia

Nas últimas décadas, o surgimento de bonecas hiper-realistas — tanto no universo infantil quanto no adulto — transformou radicalmente a função desses objetos. As reborn dolls, por exemplo, são bonecas com peso, textura e aparência de recém-nascidos, muitas vezes usadas por adultos como substitutos simbólicos de filhos perdidos, em contextos de infertilidade ou luto (CRAWFORD, 2017).

No campo das relações adultas, bonecas sexuais realistas, algumas dotadas de inteligência artificial, oferecem experiências afetivas e físicas simuladas. Estudos mostram que usuários frequentemente estabelecem vínculos emocionais com esses dispositivos, muitas vezes preferindo essas interações ao contato humano real (DANAHER; MCARTHUR, 2017).

O filósofo Zygmunt Bauman (2003) alerta para a tendência da modernidade líquida de substituir vínculos humanos profundos por relações descartáveis e controláveis. Neste sentido, bonecas realistas funcionariam como “relações seguras”, onde não há o risco da rejeição ou do sofrimento típico das interações humanas.

Comparação histórica: o que mudou?

Historicamente, a função das bonecas oscilava entre o ritual, o memorial e o brinquedo. No entanto, a contemporaneidade trouxe uma intensificação do vínculo afetivo com esses objetos, em função de três fatores principais:

- Avanços tecnológicos, que permitem realismo extremo e respostas programadas;

- Aumento da solidão urbana, agravada pela pandemia de COVID-19 e pelo isolamento digital (TURKLE, 2011);

- Crescimento de transtornos emocionais, como depressão, ansiedade e transtornos de apego (KARDEFELT-WINTHER, 2014).

Embora o uso simbólico de bonecas no passado tenha sido pontual e culturalmente delimitado, o uso atual tende à permanência, e em alguns casos, à substituição quase total de relações humanas.

A dependência de adultos por bonecas realistas não é um fenômeno novo, mas a forma como se manifesta hoje — intensificada por tecnologias e contextos sociais contemporâneos — representa uma mudança qualitativa. O objeto transicional tornou-se, para alguns, um substituto emocional permanente.

Este fenômeno levanta questões éticas, psicológicas e sociais: até que ponto o uso terapêutico de bonecas pode ser benéfico? Quando se torna fuga ou sintoma de isolamento patológico? E quais os impactos a longo prazo na vida social e afetiva das pessoas?

A análise histórica sugere que, embora os impulsos humanos permaneçam constantes — consolo, vínculo, representação — a sociedade atual oferece meios inéditos de materializar esses impulsos, o que exige reflexão crítica e multidisciplinar.


Referências

ANDERSON, M. The Human Figure in Ancient Art: Egypt to Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

BAUMAN, Z. Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

CRAWFORD, A. Reborn Dolls, Motherhood and Loss: The Affective Power of Hyperrealism. Body & Society, London, v. 23, n. 1, p. 26–50, 2017.

DANAHER, J.; MCARTHUR, N. Robot Sex: Social and Ethical Implications. Cambridge: MIT Press, 2017.

DOUGLAS, M. Pureza e Perigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1991.

FORMANEK-BRUNELL, M. Made to Play House: Dolls and the Commercialization of American Girlhood, 1830–1930. New Haven: Yale University Press, 1998.

FRASER, M. Dolls and Puppets in Classical Antiquity. Oxford: Oxford University Press, 1997.

KARDEFELT-WINTHER, D. A Conceptual and Methodological Critique of Internet Addiction Research: Towards a Model of Compensatory Internet Use. Computers in Human Behavior, v. 31, p. 351–354, 2014.

KLINE, S. Out of the Garden: Toys and Children's Culture in the Age of TV Marketing. London: Verso, 1995.

TURKLE, S. Alone Together: Why We Expect More from Technology and Less from Each Other. New York: Basic Books, 2011.

WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. (Tradução de: *Playing and Reality*, 1971).